sábado, 12 de janeiro de 2008

A MULHER-IRMÃ

I Coríntios 9.5

Um dos locais de atração turística onde gosto de levar visitantes nacionais e estrangeiros é o Catetinho. É um lugar que me emociona, pois ali o Presidente Juscelino Kubitschek despachava e convivia com os construtores de Brasília, da maneira mais simples e informal. Daquela construção saíam os que iam realizar o sonho de erguer no cerrado palácios, repartições públicas, blocos de apartamentos que, um dia, tornariam possível a vida e o trabalho na futura Capital do Brasil. Em um ritmo que impressionou o Brasil e o mundo.
Mas o ponto que quero destacar é uma parte da vegetação nativa que foi preservada naquele local. Logo no início do caminho que conduz à fonte, há uma árvore enorme, com uma tabuleta pregada no tronco, onde se lê: Jatobá. O do nosso cerrado, se destaca das demais pela sua imponência e pela nobreza do porte. É preciso levantar a cabeça para conseguir ver a copa, que ocupa muito espaço, produzindo larga sombra. As folhas mais altas é que estão na luz, como se ela lhes pertencesse.
Pois bem, ao lado do Jatobá há uma outra árvore esguia, comprida e fina, com raízes débeis, que deve ter encontrado muita dificuldade para crescer. Mas, por não ter desistido, subiu e também conseguiu seu lugar ao sol. Sua folhagem se misturou com a do Jatobá e é difícil distingui-las ou separá-las. Ninguém se preocupou em colocar tabuleta e seu nome é desconhecido. Quem vai querer saber de sua classificação botânica? Quem vai olhar para ela, podendo contemplar o Jatobá?
Hoje quero homenagear a mulher discreta, anônima ou quase, que tem o seu reconhecimento prejudicado porque existe ao lado de um marido-Jatobá.
Quero me referir a uma que é mencionada apenas uma vez, no Novo Testamento, e indiretamente, em um desabafo irritado do Apóstolo Paulo, em I Coríntios, capítulo 9.5. A tradução da Bíblia na Linguagem de Hoje registra assim:
“Será que não tenho o direito de levar comigo uma esposa cristã nas minhas viagens, como fazem os outros apóstolos, os irmãos do Senhor e Pedro?”
Quem era essa esposa cristã, essa mulher-irmã, como aparece na Versão Atualizada? Nem Lucas, que centralizou em Pedro o início do Livro de Atos, nem Marcos, que foi secretário do Apóstolo, se preocuparam em registrar o nome, ao menos. Quem foi essa mulher anônima, que existiu à sombra de Pedro e que despertou em Paulo o desejo de ter alguém assim, ao seu lado? Quem foi essa mulher que existiu no caminho que leva à Fonte da Água Viva, que é Jesus? Vamos tentar descobrir, buscando pistas de sua existência e de sua atuação, de seus sentimentos e emoções nas entrelinhas dos Evangelhos. Vamos voltar à segunda metade do primeiro século e vamos deixar que ela mesma fale:
- Que é que posso contar de mim e de nossa vida, que era tão simples? Bem, sou mulher de um pescador. Meu nome, onde nasci, de onde vim, não tem mais importância, agora. Sou o que sempre fui – a mulher de Simão, a nora de Jonas, a cunhada de André.
Vivíamos à beira do Mar da Galiléia, em Cafarnaum. Nossa casa era pequena, como as de todos os outros colegas de meu marido. Por causa da profissão, nossa rotina é que era bem diferente. Nossos horários não eram os mesmos dos outros. Para que pudessem vender peixe fresco, todas as manhãs, os pescadores trabalhavam, enquanto os da cidade descansavam e dormiam.
Muitas obrigações eram as mesmas de todas as mulheres: moer o trigo, fazer o pão, providenciar a comida. Limpar a casa, lavar a roupa. Tecer, para que não faltassem túnicas, mantos, ou cobertas. Acompanhar Simão até a praia, vê-lo partir, tentar enxergar as velas do barco sumindo entre as ondas, no horizonte escuro. Pedir que Deus o protegesse e o abençoasse com uma pesca boa e farta. Voltar para casa, dormir, ou melhor, intercalar períodos de sono com orações, para que Deus afastasse as tempestades, tão repentinas e fortes, em nossa região. Sempre pedindo por ele, sempre pensando nele, até que o sol começasse a aparecer. Então, voltar para a praia, com minhas outras companheiras e tentar enxergar entre as ondas, no horizonte que clareava, as velas do barco que trazia o pescador exausto, de volta para o aconchego da casa e da família. Depois era preciso ajudar a separar o peixe, a vender o peixe, a carregar o peixe que sobrasse, a estender a rede, a dobrar as velas, a amarrar o barco em lugar firme, porque dele dependia o nosso sustento.
Minha vida era modesta. Não havia falta, mas também não sobrava. Eu até ouvia falar em especiarias e perfumes que vinham do Oriente. Havia um, de nardo, que estava na moda. Mas não era para mim. Além de caro, como ficaria em uma casa que cheirava a peixe? A minha luta maior era com a areia. Molhada, seca, no cabelo, nas roupas, nas sandálias ou trazida pelo vento, boa parte do meu tempo era consumida tentando me livrar dela.
Nossa vida transcorreu assim por anos e anos, até que André, meu cunhado, encontrou João e resolveu segui-lo. Era um Profeta, filho de um sacerdote. Ele pregava arrependimento e batizava junto ao Rio Jordão. André largou as redes, a família e se foi. Naturalmente, Simão ficou sobrecarregado no trabalho, mas não se queixou, nem eu. É que somos muito religiosos e sentimos que um tempo novo estava chegando, de acordo com as Escrituras.
Logo depois, João, o Batista, foi preso e André voltou, falando em um outro jovem, Jesus de Nazaré. Um dia, quando estavam na praia, Jesus passou e convidou-os a segui-lo. Simão deixou de trabalhar também, e os dois passaram a acompanhar Jesus por onde Ele fosse. Eu quase não via meu marido. Não reclamei, porque compreendi que ele tinha recebido um chamado especial, de alguém muito especial, com poder especial. Eu mesma gostava de ouvir Jesus. Também não posso esquecer que ele curou a minha mãe e nós, que não sabíamos como agradecer, oferecemos nossa casa, para que ficasse conosco. Ofereci de coração e o recebi com muita alegria.
Foi então que nossa rotina mudou. Junto com o Mestre de Nazaré vieram seus discípulos e muito mais gente, o que exigia mais pão, mais peixe e mais limpeza, porque traziam mais areia... Por sorte minha mãe ajudava. Eu, sozinha, não daria conta.
As pessoas queriam ver, ouvir, tocar em Jesus. Traziam doentes para que os curasse. Depois que quatro amigos destruíram o telhado de uma casa, para colocar um paralítico diante dele, todos acharam melhor que Ele falasse de dentro do barco, na praia, ou nas encostas dos montes, onde a multidão poderia sentar para ouvir.
Jesus resolveu visitar outras cidades, ali por perto. Depois foi mais longe. Nas festas, ia a Jerusalém. E Simão junto. E eu sozinha, esperando por ele. Confiava que nada haveria de faltar – a mim e às famílias dos outros discípulos. Só da nossa praia eram quatro e havia muita solidariedade entre nós. Simão não voltava, mas eu sabia que estava feliz, fazendo o que achava que devia fazer. E também, de que adiantaria reclamar? Vocês acham que ele ficaria, se eu pedisse?
As notícias não eram muitas, nem recentes. Eles eram vistos caminhando pela estrada, de cidade em cidade, sem ter onde ficar ou dormir. O meu Simão caminhando... Ele não estava acostumado a isso. Nossos passeios eram no barco. E o Mar da Galiléia era a nossa estrada, entre uma e outra margem, entre Cafarnaum e Betsaida, sua cidade natal.
Três anos se passaram. Jesus não tinha mais só doze discípulos. Eram muitos, mais de setenta e até mulheres o seguiam... Algumas eram ricas e contribuíam com bens, para a manutenção do grupo. Por sorte era bem recebido pelo povo, em toda a parte. O mesmo não se podia dizer das autoridades religiosas. Começaram a perseguir Jesus e o clima de tensão aumentava cada vez mais.
Um dia, Simão voltou. Fiquei feliz, no primeiro momento, mas depois me assustei. Ele estava calado. Às vezes até chorava. Nunca tinha visto meu marido assim. A muito custo, consegui que falasse. Tinha um grande sentimento de culpa, por ter negado o Mestre. Contou sobre os acontecimentos tristes daquela Páscoa. Não entendia porque tinham prendido e crucificado o Senhor. Como puderam fazer isso com o Filho do Deus vivo? Bem que Simão tentou impedir e, impulsivo como só ele, cortou a orelha de um soldado! Jesus consertou a situação, realizando mais um milagre. Mas, para mim, o milagre maior foi não terem prendido Simão. Não gosto nem de lembrar...
Além da tristeza, o pânico tomou conta deles. Tiveram de se trancar em casa, com medo de também serem presos. Pobre do André, era a segunda frustração. E, então, o episódio mais bonito aconteceu: ao terceiro dia, Jesus ressuscitou! Eles nem conseguiam acreditar no que as mulheres vieram contar, sobre o túmulo vazio. Essa foi uma experiência gloriosa, que ele não cansa de repetir.
A história é longa e vocês conhecem bem o que ocorreu naqueles dias, até Simão assumir a liderança do grupo, revestido de poder pelo Espírito Santo, no Pentecostes. Nessa época já era mais conhecido como Pedro, apelido que Jesus lhe deu. A Igreja começou a crescer, a partir do discurso que meu marido fez. Que coragem! diz o povo. Mas corajoso ele sempre foi. Não era um pescador? Citou trechos das Escrituras e provou que aquele Jesus que foi crucificado, Deus o fez Senhor e Cristo. Conclamou o povo ao arrependimento e ao batismo, em nome de Jesus. Quase três mil pessoas se converteram!
Decidi acompanhá-lo depois que esteve preso. Soube que a Igreja orou muito. Aliás, os irmãos e as irmãs fizeram o que sempre fiz: pedir a Deus por ele. O Senhor enviou um anjo e o libertou.
Pedro viaja muito, agora. Precisa visitar as Igrejas, precisa atender aos convites que recebe, precisa pregar o Evangelho a toda a criatura, como Jesus mandou. Esse foi outro conflito que teve de superar, porque era muito apegado às tradições.
Os anos passaram e ele não é mais o jovem forte e vigoroso que pescava no Mar da Galiléia. Necessita de atenção e de cuidados. Mas não é só por isso que andamos sempre juntos. É que gosto do seu trabalho. Gosto de sentir seu amor pelo rebanho que Jesus lhe confiou. Gosto de sua firmeza na fé. Uma rocha, como o nome diz. Gosto de ouvi-lo contar sobre as andanças com Jesus. O povo acha diferente e engraçado esse sotaque nordestino, de galileu, que ele tem. Mas eu adoro o seu jeito de falar...
Os que crêem, aceitam perfeitamente o que ele diz. Os que ainda não se entregaram a Jesus, sorriem, mais para provocá-lo:
- Pedro, conta de novo aquela história do peixe...
- É a mais pura das verdades. Jesus não precisava pagar as duas dracmas, ou meio siclo de prata, pela expiação dos pecados, como manda a Lei. Primeiro, porque não tinha pecado, depois, porque Rei não paga imposto. E Ele é Rei.
- Mas naquele mar cheio de peixes, você jogou o anzol, pescou um e justamente na boca desse estava a moeda, Pedro?
- Estava. E era de um siclo de prata, para pagar o imposto dele e o meu.
- Essa parece história de pescador, Pedro...
- Mas não é. Vocês sabem muito pouco sobre o poder de Jesus.
Meu marido ri, divertido. A sorte deles é que, agora, Simão tem o coração cheio de amor e não se ofende mais, como antigamente. Também não se irrita nem se intimida com o clima de perseguição que existe contra os seguidores de Jesus.
Quanto a mim, às vezes viajo em navios, às vezes a pé. É claro que me canso, pois também não sou mais tão jovem. E continuo lutando com a areia. Mas, agora, não é só a do mar. Enfrento a areia seca dos desertos, que machuca e dói, que entra pelos olhos, pela boca, que gruda na pele, que sufoca e dificulta respirar.
Ninguém registrou meu nome, nem onde nasci, nem de onde vim. E eu entendo porque. Viram em mim apenas a esposa do Pastor. Não perceberam que sou a confidente, a conselheira, o coração compreensivo e amoroso. Viram apenas uma mulher-irmã na fé, uma esposa cristã. Não perceberam que sou a companheira, identificada no mesmo amor e na mesma esperança. Mas isso não tem mais importância agora. O que importa é que acompanhei muito de perto os fatos que envolveram Simão Pedro. Eu também vi e vivi muitas experiências que preciso contar. Eu também creio em Jesus, o Filho de Deus. Eu também recebi o dom do Espirito Santo. Eu também preciso ser testemunha, tanto em Jerusalém, como na Judéia, na Samaria e até os confins da Terra...

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